"O conflito mostrou-nos uma coisa: Os palestinianos em Gaza não vão sair"

  • 29/12/2025

O Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento 2025 distinguiu, enquanto finalistas, não só os estudantes sérvios, que lutam há mais de um ano contra a corrupção no país, na sequência da morte de 16 pessoas após o colapso da cobertura de uma estação ferroviária recentemente reconstruída, no dia 1 de novembro de 2024, em Novi Sad, mas também os jornalistas e os trabalhadores humanitários na Palestina e em todas as zonas de conflito, representados pela Agência da ONU de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA), pela Sociedade do Crescente Vermelho Palestiniano (PRCS) e pelo Sindicato dos Jornalistas Palestinianos.

 

À margem da cerimónia que laurerou os jornalistas Andrzej Poczobut e Mzia Amaglobeli, detidos na Bielorrússia e na Geórgia, respetivamente, o Notícias ao Minuto conversou com o responsável pela delegação na Europa da UNRWA, Marc Lassouaoui, que frisou que, apesar de Gaza ser o "lugar mais acessível do planeta", "tem sido extremamente desafiante" para a organização atuar no terreno, "por questões de direitos".

Ainda assim, Marc Lassouaoui apontou que, na sua ótica, "não há alternativa" à solução de dois Estados, uma vez que "os palestinianos em Gaza não vão sair, estão lá para ficar", tal como os habitantes da Cisjordânia. Nessa linha, o representante da UNRWA alertou que "palestinianos e israelitas terão de aprender a partilhar o espaço", sendo necessário "reunir as duas comunidades novamente, porque estão em mundos separados, apesar de compartilharem o mesmo território".

Muitas vezes atuamos após um desastre ambiental e temos dificuldades em levar os nossos camiões, mas Gaza é o lugar mais acessível do planeta. Tem Israel ao lado, que é um país desenvolvido, e tem supermercados cheios de mercadorias. Tem o Egito do outro lado, onde ainda temos centenas de camiões à espera para entrar. Então, Gaza deveria de ser o lugar mais fácil de trabalhar. Mas não tem sido assim, por questões de direitos

De que forma é que o direito internacional está a falhar não só no que diz respeito ao povo palestiniano como um todo, mas também com os jornalistas e trabalhadores no local?

Há algumas semanas, o Tribunal Internacional de Justiça decidiu que, no que diz respeito à nossa organização, o governo de Israel tinha de permitir que trabalhasse plenamente, no sentido de poder aceder a todas as áreas e trazer material internacional. É aí que, na verdade, o direito internacional está a falhar. Os palestinianos têm direito à dignidade, a serviços, à educação, à saúde, a sair. Todos esses direitos foram violados nos últimos dois anos, porque não havia nada disso em Gaza. As pessoas eram alvejadas indiscriminadamente, mortas. Estavam bloqueadas. Passavam fome. A Classificação Integrada de Fases da Segurança Alimentar (IPC, na sigla em inglês) declarou fome em Gaza. Portanto, todos os direitos mais básicos dos palestinianos foram violados. E é nisso que nós, como ONU, e nós, como UNRWA, temos trabalhado, tentando trazer alguma normalidade a Gaza, alguma ajuda. Parece fácil mas, neste contexto, tem sido extremamente desafiante. Digo isto porque, como sabe, a ONU, que trabalha em todo o mundo, normalmente não tem problemas. Muitas vezes atuamos após um desastre ambiental e temos dificuldades em levar os nossos camiões, mas Gaza é o lugar mais acessível do planeta. Tem Israel ao lado, que é um país desenvolvido, e tem supermercados cheios de mercadorias. Tem o Egito do outro lado, onde ainda temos centenas de camiões à espera para entrar. Então, Gaza deveria de ser o lugar mais fácil de trabalhar. Mas não tem sido assim, por questões de direitos. Felizmente, salvamos vidas e continuamos a salvar vidas, mas não sem desafios, que não deveríamos de ter enfrentado desde o início. É aí que a questão dos direitos é importante.

Hoje, mais uma vez, os nossos 12.000 funcionários no terreno continuam a recolher lixo e a melhorar a saúde pública. Continuamos a ser o maior prestador de cuidados de saúde básicos à população. Quem tiver diabetes, pode vir à nossa clínica e obter apoio. Quem tiver uma lesão, também receberá ajuda nos nossos centros. Continuamos a ser o principal fornecedor de água e saneamento em Gaza. Agora, retomámos a educação em Gaza, o que tem sido muito importante para as crianças que perderam mais de dois anos de escolaridade. Quase perdemos uma geração nesta fase. Dois anos sem educação, quando se tem cinco, seis ou dez anos, é um desastre para o futuro. Mantivemos mais de 300.000 crianças informadas e, de alguma forma, continuamos a educá-las através de um sistema online. Mas em Gaza, onde o Wi-Fi é limitado, onde há poucos dispositivos e onde a eletricidade é muito escassa, tem sido um desafio. Então, finalmente, em algumas partes de Gaza, conseguimos retomar a escolaridade. Já temos 60.000 crianças que frequentam espaços de aprendizagem temporários. Mas, na verdade, é apenas uma sala, como se pode imaginar, onde as pessoas dormem à noite e, durante o dia, pedimos que saiam. O professor chama as crianças e diz: “Hoje vou dar-vos uma aula.” Há pessoas de diferentes idades, mas todas muito interessadas em aprender.

As crianças não conseguem concentrar-se. Vemos isso todos os dias: começam a chorar por nada, ficam extremamente assustadas com qualquer som que seja fora do normal. Portanto, há um grande trabalho a ser feito. Precisamos de o fazer e também de garantir que o cessar-fogo é mantido. Ainda há bombardeamentos em Gaza, ainda há um grande número de pessoas mortas

Imagino que, numa zona de guerra, seja muito difícil lidar com o estado de espírito das pessoas. De igual modo, também imagino que seja um dos lugares mais esperançosos do mundo.

Algumas crianças dizem-nos que há dois anos que não veem outras crianças e amigos, e não brincam normalmente. Não puderam ser crianças. Infelizmente, tiveram de lidar com as coisas horríveis da guerra. E, agora, finalmente, conseguimos trazê-las de volta à infância, lentamente. Isso está a acontecer, mas terão de passar por um grande, grande apoio psicossocial, porque o trauma é sem precedentes. Nunca vimos nada assim. Todos em Gaza estão traumatizados. E, claro, as crianças mais do que qualquer outros, porque são mais sensíveis ao que aconteceu à sua volta.

E o trauma é geracional. Os pais dessas crianças provavelmente ficaram traumatizados por causa do que acontece na região há anos. Agora, essas crianças estão traumatizadas. Se tiverem filhos, também sofrerão com esse trauma. Como é que quebramos este ciclo?

É muito trabalho. Mas, saliento, até mesmo a nossa própria equipa, que é composta por conselheiros psicossociais, está traumatizada. Quando se é uma pessoa traumatizada, como é que se pode ajudar os outros? É difícil. Quero dizer, é claro que eles têm ferramentas; fazem o seu trabalho e fazem-no bem. Mas não é fácil, nesse contexto, ajudar as crianças. Sem isso, é difícil retomar a educação formal, porque as crianças não conseguem concentrar-se. Vemos isso todos os dias: começam a chorar por nada, ficam extremamente assustadas com qualquer som que seja fora do normal. Portanto, há um grande trabalho a ser feito. Precisamos de o fazer e também de garantir que o cessar-fogo é mantido. Ainda há bombardeamentos em Gaza, ainda há um grande número de pessoas mortas. Em Gaza, desde o início do cessar-fogo, centenas de pessoas foram mortas.

Considera que esse cessar-fogo serve para apaziguar o Ocidente mas, na realidade, não é um cessar-fogo?

Diria que, para as pessoas em Gaza, não parece um cessar-fogo. Acho que é importante para nós, para todos nós. Também é importante para o povo de Gaza. Vimos alegria nas ruas quando o cessar-fogo foi anunciado. Acho que há esperança, mas também há desespero. É com isso que as pessoas têm de lidar: esperança e desespero ao mesmo tempo. Esperança de que algo melhor virá, mas também desespero pela vida quotidiana, que é horrível.

Além da crise já existente, temos condições meteorológicas horríveis que matam pessoas, tornam a vida das pessoas insuportável, com água até aos joelhos, tendas destruídas e danificadas, numa altura em que não podemos importar mais tendas para ajudar as pessoas. Agora, há uma tempestade. Estava a ver a previsão meteorológica em Gaza antes de vir para cá. Há uma tempestade a começar hoje [dia 15 de dezembro], que vai durar os próximos dois dias. Será que vai causar mais mortes? Não sabemos, mas há desafios sucessivos para o povo de Gaza.

Vejo aquelas pessoas que deixaram tudo para continuar a cuidar e apoiar a sua comunidade, e isso é difícil. Em guerra, quando se está sob bombardeamentos, quando se tem uma família para proteger, eles vão cuidar dos outros

Normalmente, a resistência palestiniana é encarada como violência indiscriminada. Por outro lado, os israelitas são vistos como estando apenas a responder ou a defender-se. Porque é que acha que existe essa diferença?

Somos só uma organização humanitária, por isso é difícil para nós comentar isso. Mas o que posso dizer com certeza é que o nível de sofrimento é tal que as pessoas estão zangadas, estão desesperadas, e a violência gera violência. O desespero gera desespero. É importante que tentemos quebrar esse ciclo de violência e desespero e trazer mais esperança. Estava a dizer a um dos seus colegas que toda a comunidade internacional e a Europa na vanguarda, que sempre apoiaram financeiramente estes esforços, têm de continuar a fazê-lo. Dependemos de contribuições voluntárias para funcionar como organização da ONU e, se queremos garantir que mudamos este ciclo, que o quebramos, então temos de garantir que as pessoas vivem melhor. Isso passa por apoiar as pessoas através de organizações como a nossa, que é de longe a maior em Gaza.

Com a assinatura da Declaração de Nova Iorque, em setembro, os Estados-Membros sinalizaram acreditar que teremos de ter uma solução, nomeadamente uma solução de dois Estados. Por isso, o Estado palestiniano tinha de ser construído ali. E estamos lá, na verdade, para ajudar a construir também essas instituições palestinianas, retomando os serviços públicos. Porque, no final das contas, nós, como UNRWA, somos prestadores de serviços públicos. É para isso que fomos criados. Embora o nosso mandato e a nossa ação no terreno se tenham expandido muito devido a uma crise após a outra, prestamos ajuda alimentar, assistência financeira, apoio psicológico e muitas outras coisas que se somaram ao nosso mandato. Mas o mandato principal é a educação e a saúde das pessoas, e isso acabará por ter de ser transferido para uma entidade palestiniana. Porque, eventualmente, devemos desaparecer, certo?

Tem alguma história que lhe tenha ficado marcada na sua memória sobre as pessoas em Gaza?

Há várias… Estou em Bruxelas, mas também vivi em Gaza muitos anos. Vejo aquelas pessoas que deixaram tudo para continuar a cuidar e apoiar a sua comunidade, e isso é difícil. Em guerra, quando se está sob bombardeamentos, quando se tem uma família para proteger, eles vão cuidar dos outros. Mas, mesmo assim, vão para um abrigo onde há 5.000 ou 10.000 pessoas que mal conseguem viver ou que vivem em condições horríveis, porque as escolas não foram concebidas para serem abrigos para tantas pessoas.

No auge da crise, havia centenas de milhares de pessoas nas escolas. Então, acho é comovente que todas essas pessoas tenham sacrificado tudo, e algumas até morreram ao fazê-lo. Milhares fizeram o sacrifício máximo apenas para ajudar a sua comunidade.

Aquelas pessoas vivem da mesma maneira, e o conflito mostrou-nos uma coisa: os palestinianos em Gaza não vão sair, estão lá para ficar. As pessoas na Cisjordânia, o mesmo. Palestinianos e israelitas terão de aprender a partilhar o espaço. É onde eles estão, é onde continuarão a estar. E teremos de trabalhar para reunir as duas comunidades novamente

Como é que o Ocidente pode ajudar o povo palestiniano e a ONU?

No imediato, falta financiamento. Podemos cuidar do que está a acontecer no terreno. Estamos lá. Nós, a ONU, e todas as nossas organizações irmãs estão a fazer um trabalho fantástico no terreno, mas o cessar-fogo foi anunciado e já vemos pessoas a retirar o financiamento. Por isso, mantenham o foco em Gaza. É através de si, do que faz. Se comparar o que víamos na televisão, nas notícias, antes do cessar-fogo, com o que vemos agora, não há comparação. As pessoas simplesmente desligam-se. Por isso, continuem envolvidos. Continuem a falar sobre Gaza. Continuem a falar sobre o que está a acontecer no terreno. Continuem a falar sobre o sofrimento, porque se falarem sobre isso, garantem que as pessoas também contribuem. Tanto o governo, que é importante e de cuja ajuda dependemos, como pessoas como vocês e eu, podemos dar cinco ou dez dólares ou euros por dia para os esforços humanitários no terreno.

Acho que devemos continuar envolvidos e também pressionar para que o cessar-fogo seja aplicado, pressionar por um processo significativo, porque, no final das contas, temos de garantir que a Palestina é para os palestinianos, que haja uma solução de dois Estados, como aqui na Europa a maioria acredita, e isso requer trabalho e coragem. Se não formos corajosos o suficiente para pressionar, nada acontecerá, e isso está nas mãos dos nossos líderes.

De que modo é que, a seu ver, funcionaria a solução de dois Estados?

Acho que não há alternativa. Aquelas pessoas vivem da mesma maneira, e o conflito mostrou-nos uma coisa: os palestinianos em Gaza não vão sair, estão lá para ficar. As pessoas na Cisjordânia, o mesmo. Palestinianos e israelitas terão de aprender a partilhar o espaço. É onde eles estão, é onde continuarão a estar. E teremos de trabalhar para reunir as duas comunidades novamente, porque estão em mundos separados, apesar de compartilharem o mesmo território, apesar de compartilharem uma espécie de fronteira, se é que se pode chamar de fronteira, com o crescimento dos assentamentos e tudo mais, mas compartilham o mesmo espaço.

Leia Também: Bélgica apoia processo contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça

FONTE: https://www.noticiasaominuto.com/mundo/2909930/o-conflito-mostrou-nos-uma-coisa-os-palestinianos-em-gaza-nao-vao-sair#utm_source=rss-ultima-hora&utm_medium=rss&utm_campaign=rssfeed


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