"Não podemos projetar casas em Faro a partir de Bruxelas. Seria loucura"
- 20/10/2025
À margem da 23.ª edição da Semana Europeia das Regiões e dos Municípios, que decorreu entre os dias 13 e 15 de outubro, em Bruxelas, a presidente do Comité das Regiões Europeu, Kata Tüttő, reiterou que a proposta do Quadro Financeiro Plurianual (QFP), apresentada pela Comissão Europeia em julho passado, "vai completamente contra o conceito da Europa das regiões" e "contra a política de coesão, que é a ferramenta de investimento mais importante" do bloco.
Acompanhado pelo jornalista Markus Peters, do Weser-Kurier, e pela jornalista Francesca De Benedetti, do Domani, o Notícias ao Minuto - que viajou para Bruxelas a convite do Comité das Regiões Europeu - sentou-se à mesa com Kata Tüttő, que destapou o véu não só no que diz respeito à proposta do orçamento dos 27, que foi elaborada de forma "muito pouco ortodoxa", mas também quanto à sua visão sobre o "estado de emergência constante em que vivemos", cuja "mitologia da eficiência e da rapidez mata a democracia".
A socialista húngara confessou, além disso, que a Inteligência Artificial (IA) generativa é maior ameaça que a democracia enfrenta atualmente, uma vez que mergulhou o mundo numa "crise energética social, proveniente da aceleração e da disrupção tecnológica", e promoveu a "desconfiança em relação às instituições". A presidente do Comité das Regiões Europeu frisou, nessa linha, que a União Europeia (UE) foi criada "para proteger as pessoas", que "não querem trabalhar mais e passar toda a vida a correr cada vez mais depressa". É por isso que, na sua ótica, as populações "votam em partidos que lhes dizem que podem parar o tempo, que podem abrandar, que não precisam de correr depressa, que não há urgência". Kata Tüttő alertou, contudo, que "se não tivermos compaixão por este tipo de dor, podemos acelerar, mas não haverá ninguém".
À primeira vista, o dinheiro parece ser suficiente mas, na realidade, é claramente menos em proporção e, em termos de preço real, nem sequer sabemos quanto os Estados-membros contribuirão para as despesas comuns [no QFP]. Portanto, é apenas uma proposta para o montante. Pode ser menos
Vimos, na sessão de abertura, a diferença entre a posição da Comissão Europeia sobre o QFP e a posição do Comité das Regiões Europeu. Todos os representantes locais frisaram ser muito importante que sejam as regiões a receber os fundos e não o governo central. Considera que conseguirá mudar a posição da Comissão?
A Comissão Europeia não é diretamente um órgão político, por isso serão os Estados-membros a decidir. Claro que será o Parlamento Europeu a decidir mas, para simplificar, trata-se de uma proposta da Comissão Europeia aos Estados-membros. Qual é a proposta? Há uma nova estrutura orçamental. Dizem que é uma simplificação, que se trata apenas de remover a complexidade, [mas] há uma dupla centralização e um elemento de negociação aqui. É por isso que, às vezes, chamo a isto um acordo, porque há um elemento de negociação. É assim que vejo as coisas. A Comissão diz que dará metade do orçamento em envelopes nacionais aos governos dos Estados-membros, para lidarem com assuntos com os quais não quer lidar no futuro, [como é o caso da] política agrícola, [porque] não quer ver os tratores aqui novamente. Recebem metade do dinheiro com flexibilidade, muito poucas restrições. À primeira vista, o dinheiro parece ser suficiente mas, na realidade, é claramente menos em proporção e, em termos de preço real, nem sequer sabemos quanto os Estados-membros contribuirão para as despesas comuns. Portanto, é apenas uma proposta para o montante. Pode ser menos.
Então, a proposta é que [os governos de cada país] tenham carta branca, [para receber] o dinheiro numa mala. A coesão é reduzida a uma mala de dinheiro: recebem e lidam com isso. O que é que a Comissão Europeia ganha em troca? Ganha uma ferramenta de investimento nova, super centralizada e limpa nas grandes indústrias de defesa e competitividade, e a Europa global que já existia. Mas é muito centralizada, não tem uma dimensão territorial. É uma coisa muito transacional, em que se um Estado-membro apoia uma proposta, recebe um supercomputador de IA aqui, uma fábrica de defesa e de drones ali. A Comissão Europeia tem centenas de milhares de euros, o que parece muito dinheiro mas, na realidade, o que digo sempre é que a Europa precisa de investir em competitividade. Esse investimento está a acontecer ao nível dos Estados-membros, porque o orçamento europeu é muito pequeno, um por cento do PIB da Europa.
[A coesão] não é uma política de caridade, é uma ferramenta muito económica e há um grande esforço por parte dos Estados-membros e das regiões que partiram de uma base mais baixa para recuperar o atraso, porque tudo está a avançar muito rapidamente, devido à tecnologia, às mudanças na indústria, às alterações demográficas
Digo sempre que o orçamento de sete anos é inferior ao PIB anual da Baviera [estado no sudeste da Alemanha]. Portanto, este dinheiro serve para manter tudo a funcionar, para manter os 27 juntos, para investir na coesão em todo o lado, em todas as regiões, para investir nas escolas, nos hospitais, nas infraestruturas, nas pequenas e médias empresas. É uma quantia muito pequena, mas é um dinheiro muito, muito importante e proporciona alguma equidade, porque é isto que faz com que o mercado único funcione, que é o pilar da competitividade da UE. O mercado único dá um extra ao PIB. É isso que os Estados-membros calculam, é isso que a Europa calcula.
Analisei as estatísticas nacionais alemãs e as estatísticas nacionais dos Países Baixos e vi que cada cêntimo investido na coesão tem um retorno muito elevado, algo como nove vezes superior. Por isso, não é uma política de caridade, é uma ferramenta muito económica e há um grande esforço por parte dos Estados-membros e das regiões que partiram de uma base mais baixa para recuperar o atraso, porque tudo está a avançar muito rapidamente, devido à tecnologia, às mudanças na indústria, às alterações demográficas. Todos têm de correr muito depressa e é muito difícil para aqueles que partiram de um nível mais baixo.
Há uma condição extra associada ao acordo, um novo mecanismo. Sabemos, através do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR), que todo o dinheiro está vinculado a reformas nacionais e, mesmo que uma região faça tudo de acordo com as regras, não recebe nada, porque o governo nacional não cumpre um dos objetivos, e isso prejudica o todo. Sou da Hungria, sei exatamente quanto prejuízo causou a Budapeste não receber fundos de coesão, quanto prejuízo causa à Hungria rural não receber nenhum fundo de coesão. A Hungria não é uma ilha remota no Oceano Pacífico, está aqui na Europa Central e o interesse da Europa é mantê-la dentro do tecido europeu e não deixá-la ficar muito fraca. Se ficar muito fraca, fica muito frágil.
Mencionou que é da Hungria. Se o dinheiro for entregue ao governo central, pode haver a possibilidade de as necessidades reais dos cidadãos não serem colmatadas e de o dinheiro ser gasto noutras coisas? Quero dizer, todos viram a riqueza repentina da família de Viktor Orbán [primeiro-ministro húngaro], vimos as fotos do castelo algures numa zona rural…
Isso vem do dinheiro dos contribuintes húngaros. Também li as notícias, mas são coisas muito simplificadas. A UE é muito cuidadosa com o dinheiro que dá e, quando o dinheiro não é bem gasto, recupera-o. Portanto, no caso da Hungria, trata-se do dinheiro dos contribuintes húngaros e não de fundos europeus. Os fundos europeus foram gastos; o problema foi que não foram usados como um aditivo a um combustível para levar o país mais além, mas substituíram os fundos nacionais. Isto porque os fundos de coesão europeus funcionam bem se forem aplicados como um extra ao financiamento nacional, ao financiamento local. Se quiséssemos mudar um espaço público, normalmente pensaríamos apenas no betão, mas depois investiríamos em eficiência energética, em luzes LED, em cidades-esponja, em sombras, em acessibilidade, em ciclovias, porque a política de coesão é uma ferramenta de integração da UE.
Somos constantemente pressionados a agir agora, neste momento, rapidamente, e essa mitologia da eficiência e da rapidez mata a democracia, porque a democracia é um processo muito demorado, mas é o único que é bom para a maratona que estamos a correr. Agora, todos querem fazer um sprint
É assim que se integram as políticas: recebemos algum dinheiro, mas em troca implementamos todas as dimensões em matéria de neutralidade climática, mitigação, adaptação, pobreza energética, igualdade de género, transformação digital. É do processo que os Estados-membros muitas vezes se queixam, por causa da burocracia. Há uma componente de verdade nisso, mas também é um processo de aprendizagem. Se o nível local também fizer parte do projeto, é uma constante, – que consome muita energia –, mas é uma ferramenta de integração. É assim que fazemos com que os presidentes de Câmara, as cidades e as administrações locais invistam constantemente na compreensão de todas as políticas porque, caso contrário, é muita energia [despendida]. Claro que há burocracia, mas é uma ferramenta muito boa para todos; não só na Hungria, não só na Bulgária. Todos têm desafios e ninguém tem dinheiro suficiente.
Considera que esta escolha de von der Leyen de dar mais poder aos governos centrais também coloca em risco a democracia a nível local, porque as regiões podem ser constantemente chantageadas? Além disso, mencionou, na sessão de abertura, que esta proposta força os países a uma espécie de 'Jogos da Fome'. Receia que a democracia seja corroída e que os países mais ricos fiquem contra os países mais pobres, aumentando a desigualdade?
Acho que há duas dimensões. Uma dimensão é a ameaça à democracia, é este estado de emergência constante em que vivemos. Somos constantemente pressionados a agir agora, neste momento, rapidamente, e essa mitologia da eficiência e da rapidez mata a democracia, porque a democracia é um processo muito demorado, mas é o único que é bom para a maratona que estamos a correr. Agora, todos querem fazer um sprint, mas isso é algo muito diferente e mata a democracia, porque a democracia não está relacionada com coisas rápidas e eficientes. Tem de levar o seu tempo, tem de haver diálogo, tem de haver compromissos.
É necessário encontrar o espaço entre verdades profundas opostas que existem e o diálogo constante entre o hoje e o amanhã. O problema deste estado de emergência é que usamos todos os recursos do amanhã para resolver os problemas de hoje. Ninguém é má pessoa, ninguém quer má governação, nunca supomos isso. Mas, se alguma vez governou alguma coisa, sabe que terá sempre muitos problemas e pouco dinheiro para as soluções. Portanto, se tiver liberdade para usar os recursos disponíveis, será pressionado para apagar o incêndio de hoje e desviá-los do investimento de amanhã.
Costumo dizer que só quem tem muito dinheiro é que pode fazer as melhores escolhas. O mesmo aplica-se à sociedade, às cidades, às regiões e aos Estados-membros, porque quem tem recursos suficientes pode investir no futuro, o que lhes trará mais dinheiro. Os que são pobres gastam tudo o que têm para sobreviver no presente, o que constitui um problema, nomeadamente para a democracia. Quando afirmo que os fundos de coesão têm de fluir e ajudar na transição de todas as regiões, trata-se também de uma questão política.
Se aceitarmos a proposta de que os fundos de coesão são apenas um fundo de solidariedade que só pode ser utilizado para aqueles que estão abaixo do limiar de desenvolvimento, esse é o primeiro passo. Nesse caso, a maioria das regiões e dos Estados-membros não receberá qualquer verba dos fundos de coesão e perderá totalmente o interesse na coesão. Portanto, o próximo passo será, na minha opinião, o desaparecimento total dos fundos de coesão, uma vez que haverá sempre novas crises, e cada vez maiores. Não creio que o mundo vá abrandar. Não creio que as crises serão menos frequentes. Devido à tecnologia, tudo está a acontecer muito rapidamente, numa escala que nunca vimos antes, por isso nada abrandará. Mas não podemos estar constantemente num estado de stress e emergência, porque nós, seres humanos, não conseguimos sobreviver assim.
Era um tempo de luxo quando não tínhamos de gastar tanto com a defesa e podíamos aplicar esse dinheiro em hospitais, creches, habitação. Agora, todos têm de gastar mais em defesa a nível nacional, mas alguns gostariam de substituir esses gastos nacionais por gastos comuns, porque todos têm essa tensão de que ninguém tem dinheiro suficiente. O problema da habitação está à nossa volta, mas é claramente uma questão local. Não se pode projetar casas em Faro a partir de Bruxelas; seria uma loucura
O que acontecerá a uma região rica, caso fique sem os fundos circunscritos? O que acontecerá se o seu líder for da oposição, ou seja, não pertencer à mesma fação do governo? A região corre o risco de não ter quaisquer fundos de coesão?
É claro que corre riscos. Nesta nova lógica, se for aceite, a coesão é uma escolha do governo nacional. O dinheiro para o desenvolvimento rural está num fundo comum; é a parte sobre a qual o governo nacional tem uma nova discricionariedade, em comparação com o que acontece agora. Portanto, também haverá influência política. Tecnicamente, só as verbas reservadas para a Política Agrícola Comum (PAC) e as verbas reservadas para as regiões menos desenvolvidas é que estão asseguradas. Tudo o resto pode ser decidido, não há regras nem deveres. A flexibilidade só funciona, penso eu, quando se acredita nas democracias, quando as democracias são muito estáveis e existem mecanismos suficientes de controlo e equilíbrio. A flexibilidade funciona se todos confiarem uns nos outros. Se não houver confiança, não se dá flexibilidade. Não se dá flexibilidade aos filhos se nunca fazem o que dizem.
Na sessão de abertura, Vasco Alves Cordeiro disse que pensou na expressão "façam mais e falem menos" ["Put your money where your mouth is", no original]. Acho que ilustra perfeitamente a situação porque, ao ouvir os discursos, diríamos que a coesão é, de facto, uma prioridade e que será mantida. Contudo, na prática, há um processo de nacionalização em curso. Como explica isto?
Não fui eu que propus o orçamento. Normalmente, na Europa, há um processo. Há uma proposta de orçamento e, de seguida, há uma discussão em diferentes níveis. Esse é o papel do Comité das Regiões. Temos uma verdade diferente [da da Comissão Europeia]. O Parlamento Europeu também tem uma forma diferente de encarar o orçamento, assim como os governos dos Estados-membros. No final, a verdade de todos é colocada em cima da mesa e, nesse processo, encontramos uma solução que funciona. Todos abdicam de algo da sua verdade, mas chegam a um acordo. É assim que a Europa funciona e deve funcionar, não com centralização. Convenceram-nos. Agora, temos de convencer von der Leyen. A política funciona assim. Também há desconfiança na UE. A desconfiança na UE vem, em parte, do nível de ansiedade. É muito simples encontrar um bode expiatório. Tem ansiedade. Porquê? Não sabe. Não faz ideia do porquê de se sentir mal. Sente-se mal porque a Europa não está a fazer nada por si. Nós, líderes, temos de ver um pouco além disso.
Fala-se muito sobre defesa, que é muito importante neste momento. Mas, como os portugueses sentem que estão mais distantes da linha da frente da guerra [na Ucrânia], não compreendem a necessidade de investir em defesa, quando está em curso uma enorme crise habitacional, por exemplo. No barómetro regional e local do Comité, 70% dos representantes portugueses consideraram que resolver a crise habitacional com preços acessíveis deve ser uma das principais prioridades do orçamento da UE. Para meter as coisas em perspetiva, apenas 38% dos outros representantes demonstraram ter essa preocupação. Então, como é que a UE pode ajudar o governo português e os seus cidadãos a compreender não só a importância da defesa, mas também a resolver este tipo de crises?
Penso que o equívoco reside no facto de que, quando falamos do orçamento, referimo-nos apenas às despesas que fazemos em conjunto. Se analisarmos quanto a Europa gasta atualmente em defesa, as despesas comuns representam cerca de 1% das despesas nacionais. Assim, quando falamos de investimentos europeus em defesa, estes ocorrem ao nível dos Estados-membros. Quando analiso as despesas da Europa em competitividade, na realidade estas ocorrem ao nível dos Estados-membros. O que gastamos em conjunto é uma gota no oceano, mas a proposta é que, como é muito pouco o que gastamos em conjunto, todos têm de aumentar os seus gastos com a defesa, o que é compreensível, devido à perda de confiança no mundo. Era um tempo de luxo quando não tínhamos de gastar tanto com a defesa e podíamos aplicar esse dinheiro em hospitais, creches, habitação. Agora, todos têm de gastar mais em defesa a nível nacional, mas alguns gostariam de substituir esses gastos nacionais por gastos comuns, porque todos têm essa tensão de que ninguém tem dinheiro suficiente. O problema da habitação está à nossa volta, mas é claramente uma questão local. Não se pode projetar casas em Faro a partir de Bruxelas; seria uma loucura e não pode funcionar assim.
O que aconteceu foi um processo muito interessante, um processo não aberto, em que a Comissão Europeia apresentou um orçamento que vai contra os princípios da Europa, o que é um elemento surpreendente. Vai completamente contra o conceito da Europa das regiões, vai completamente contra a política de coesão, que é a ferramenta de investimento mais importante
A questão da habitação só é colocada, pelo que percebo, a nível europeu porque surge em todo o lado e é preciso identificar e compreender quais são os pontos comuns, qual é a demografia por detrás disso, qual é a economia por detrás disso, e também quais são os regulamentos europeus que talvez impeçam os Estados-membros de investir em habitação. Podemos dizer em conjunto que a habitação faz parte da infraestrutura crítica, para que se possa investir dinheiro do Estado, dinheiro público, porque já não é uma questão de economia de mercado, é parte de uma infraestrutura social. Se existem barreiras aos auxílios estatais à habitação, podemos ver se existem a nível europeu. Podemos ver se podemos aplicar as ferramentas do Banco Europeu de Investimento, que podem ajudar a investir nas regiões e nas cidades, porque nem sequer é ao nível dos Estados-membros que se decide onde investir na habitação. É preciso olhar para todas as diferentes dimensões, mas as casas terão de ser construídas nas comunidades. E não se trata apenas de construir novos parques habitacionais; sabemos que há o problema do arrendamento de curto prazo, há uma questão de regulamentação. Por exemplo, regulamentar empresas globais é muito difícil a partir de Budapeste e é muito mais fácil se for um mercado de 400 milhões de euros, que pode dizer não a qualquer grande empresa multinacional. Uma cidade não pode fazê-lo.
Também há a questão das más condições habitacionais e temos de ver como é que o fundo de coesão pode ser utilizado na renovação, no investimento energético da remodelação habitacional. Estamos a analisar diferentes modelos. Temos o modelo absolutamente fantástico de Viena, que não é replicável. No entanto, é sempre bom analisá-lo. Todos estão a experimentar diferentes soluções em termos de regulamentação. Em Budapeste, temos muitos problemas com casas vazias e compradas para investimento. Temos de dizer que a habitação não é apenas um ativo no mercado de ações, é uma infraestrutura crítica, por isso não deve ser uma ferramenta para os investidores manterem o seu dinheiro.
Em termos simples, von der Leyen está a dizer que a alma da Europa, que é a coesão, será gerida pelos governos centrais. Portanto, trata-se de um revés nacionalista?
Sim.
Então, há uma questão política? Quando Raffaele Fitto foi nomeado vice-presidente executivo para a Coesão e Reformas, houve muita agitação política, uma vez que era conservador. Contudo, parecia que isso não influenciava as suas políticas. Agora, se olharmos para isto, trata-se de uma política nacionalista. Como é que encara essa questão? Há um desafio político entre duas visões, uma nacionalista e outra pró-europeia, também com a questão do fundo de coesão?
Não, não creio. Não creio que tenha funcionado assim, mas não tenho conhecimento do funcionamento interno da Comissão Europeia. Tenho apenas suposições. O que sei é que Raffaele Fitto compreende a coesão. Como antigo presidente e vice-presidente da região de Apúlia, sabe claramente como a coesão é importante e acredita nisso. Acredita na descentralização, na responsabilidade partilhada, e o que percebi é que ele representava a versão descentralizada e uma política de coesão autónoma e forte. Não sei o que aconteceu à porta fechada, mas tivemos muitas discussões. Sabe quando dizem que a ouvem ou quando há uma discussão real, o que significa que estão interessados no que está a dizer e que estão a mudar de perspetiva por causa disso? Tive discussões reais com Raffaele Fitto e sei que ele representou aquilo em que acredita e aquilo em que acreditamos: que a Europa não pode desligar-se das regiões, que tem de fluir para todo o lado, que a coesão é uma ferramenta de investimento e não um fundo de caridade, que tem de servir a transição em todo o lado e não deve ser nacionalizada. Mas, como sabem, a decisão não é dele. Pelo que percebi, o caminho da proposta orçamental foi pouco ortodoxo.
Pois, mencionou que houve um "sigilo injustificado" em torno da proposta.
Pensamos que assim foi. Normalmente, uma proposta orçamental tem de ser, ao nível democrático europeu, um processo muito aberto, uma vez que o orçamento tem de representar os valores e os pontos que acordámos abertamente. Há discussões no Parlamento Europeu, discussões entre os Estados-membros, estabelecemos os princípios e o papel do orçamento é representá-los. O que aconteceu foi um processo muito interessante, um processo não aberto, em que a Comissão Europeia apresentou um orçamento que vai contra os princípios da Europa, o que é um elemento surpreendente. Vai completamente contra o conceito da Europa das regiões, vai completamente contra a política de coesão, que é a ferramenta de investimento mais importante.
Temos esta tensão constante entre os diferentes níveis de liderança, entre quem tem responsabilidade, entre quem tem recursos. Isto faz parte de um processo normal, mas tem de continuar a ser um processo democrático. É isso que dizemos. E é por isso que a forma como a proposta orçamental foi elaborada foi muito pouco ortodoxa, porque faltou esse tipo de transparência e esse reflexo de uma compreensão básica de que estamos a gerir as coisas em conjunto
Onde estão os seus aliados nesta luta política pela descentralização do dinheiro?
No Parlamento Europeu. No Comité das Regiões Europeu há um consenso entre os grupos políticos; todos os grupos políticos apoiam. A maioria dos grupos políticos no Parlamento Europeu também está de acordo em separar a política agrícola da política de coesão numa não nacionalização. Visito todas as semanas uma região diferente e, no Comité das Regiões, temos membros muito poderosos que detêm poder político nos seus próprios Estados-membros, entre eles presidentes de Câmaras Municipais, presidentes de regiões. Reuni-me com os presidentes das regiões italianas e temos uma carta assinada por todos a favor de uma política de coesão forte. Tenho também uma carta idêntica de todos os presidentes das regiões espanholas, e Espanha é um Estado descentralizado.
Os presidentes das regiões são poderosos. Tenho uma carta assinada por todos os presidentes das regiões polacas. Vejo que no Bundesrat [órgão legislativo que representa os 16 estados federados da Alemanha a nível federal] também há algo a ferver. Pelo que percebi, no acordo de coligação do governo alemão, a política de coesão está presente, o papel das regiões está presente, e é um Estado-membro muito centralizado. Por isso, estou a construir alianças. Também tenho uma carta dos presidentes franceses das regiões, uma carta a Emmanuel Macron [presidente francês] sobre uma política de coesão autónoma. Temos, não sei, centenas de políticos locais que assinaram uma carta a favor da coesão. Temos a Aliança pela Coesão. É assim que construímos este movimento. Amanhã [15 de outubro] haverá uma iniciativa. Está a ocorrer uma espécie de revolução.
Vai participar no protesto?
Estarei lá, claro. [E esteve mesmo. Poderá ler mais sobre a manifestação aqui.] Quer dizer, podemos trazer tratores em novembro. O outro lado da fronteira natural está muito movimentado. Talvez não tenhamos tratores, mas temos Phillip Close [autarca de Bruxelas], não é? Se alguém puder fechar a cidade, será ele. Mas, não, não quero colocá-lo nessa posição. Ele também nos apoia.
Pergunto-me se haverá margem para alguns desafios jurídicos. Sei que quando se envolve o Tribunal de Justiça os processos levam anos, mas o princípio da subsidiaridade está em risco. Toda a questão dos tratados de coesão está em risco. Von der Leyen está, de certa forma, a desafiar os tratados, dos quais deveria ser guardiã. Também planeia fazer algo a nível jurídico?
Essa é a última opção, porque só pode acontecer depois de termos perdido a batalha pela coesão, mas não quero perder a batalha pela coesão. O papel do tribunal não é lidar com questões políticas. Esta é uma questão política básica que tem de ser resolvida pelos políticos, e não no tribunal, não pelos juízes. Sabemos, pelo casamento, que esse é o último recurso. É muito mau se acabarmos no tribunal. Portanto, se nada de bom sair daí, é preciso resolvê-lo. E há esta negociação constante. É a nossa vida, é a história da humanidade. Temos esta tensão constante entre os diferentes níveis de liderança, entre quem tem responsabilidade, entre quem tem recursos. Isto faz parte de um processo normal, mas tem de continuar a ser um processo democrático. É isso que dizemos. E é por isso que a forma como a proposta orçamental foi elaborada foi muito pouco ortodoxa, porque faltou esse tipo de transparência e esse reflexo de uma compreensão básica de que estamos a gerir as coisas em conjunto.
Quando não há confiança, tudo se torna muito caro e muito instável, e a democracia enfraquece. Vemos isso nos nossos cidadãos, com a depressão crescente e a apatia, se olharmos para a nova geração. Não é resultado da Covid-19. As pessoas estão muito cansadas, e é por isso que muitas votam em partidos que lhes dizem que podem parar o tempo, que podem abrandar, que não precisam de correr depressa, que não há urgência. Se não as compreendermos, se não tivermos compaixão por este tipo de dor, podemos acelerar, mas não haverá ninguém
Em abril, houve um apagão na Península Ibérica. Isso não demonstra também a necessidade de haver uma gestão do risco de catástrofes a nível local? Então, como é que chegámos a esta proposta orçamental, quando estes problemas estão a ocorrer atualmente? Parece haver um desvio das necessidades e dos interesses dos cidadãos.
A perda de confiança é muito cara. É isso que vemos e esse é o preço a pagar. Se houver cooperação no mundo, todos prosperam. Se nos afastarmos disso, aprendemos com a teoria dos jogos, que é algo matematicamente comprovado. A cooperação proporciona um excedente para todos. Se a cooperação se perde, se a confiança se perde, sai muito caro. Todos perdem. É claro que temos de entender porque é que isto está a acontecer, mas esse é um assunto diferente. E muitas perturbações vêm da tecnologia. Agora, há tantas crises graves. Em todos os documentos políticos que lemos, vemos que é preciso agir agora, ontem, mas não é possível. Este estado de emergência constante não melhora a política. Sabem, também temos esta pressão da parte da competitividade. Ou competimos ou morremos. Por isso, retiramos dinheiro da coesão e gastamo-lo em alguma IA. Os quatro gigantes tecnológicos – Google, Meta, Amazon e Microsoft – vão gastar 3.000 mil milhões de dólares norte-americanos em centros de dados, até 2030. Apenas em centros de dados. 3.000 mil milhões, em comparação com o orçamento europeu. Apenas para ter uma proporção.
Nas alterações climáticas também se vê essa mudança, devido à urgência. Há uma mudança entre a parte da mitigação e a parte da adaptação, porque a mitigação, quando se reduz o CO2, é um investimento no futuro. Mas há desastres constantes. Há inundações. Há secas. É preciso construir centrais de dessalinização. É preciso construir barragens mais altas. É preciso apagar incêndios florestais. De onde vem o dinheiro? Não há solução simples, mas temos de enfrentar a realidade: políticos e cidadãos, porque é uma responsabilidade compartilhada; não é apenas entre a UE, os Estados-membros e regiões. São todos os níveis da sociedade que têm de enfrentar a realidade, e é muito difícil num mundo polarizado, num mundo onde o real e o irreal já não se conseguem distinguir. É muito difícil dizer às pessoas para correrem mais depressa, quando já estão muito cansadas e querem parar. Não querem correr mais depressa, não querem trabalhar mais e passar toda a vida a correr cada vez mais depressa. Não há soluções fáceis para isto.
Disse que o primeiro passo são os 'Jogos da Fome' e que o segundo passo poderia ser diluir a política de coesão. Não sei se teremos uma política de coesão daqui a 20 anos.
O que vejo é que o núcleo social da coesão está em risco neste momento. O que aprendemos é que temos de olhar para trás, para a história. Quando olhamos para a história e aprendemos como é que os impérios ruíram, temos de compreender que, se não fizermos as coisas de forma equilibrada, também ruiremos. Não digo que seja fácil, mas também é preciso investir nas pessoas. Temos uma crise energética, sim, mas também temos uma crise energética social, proveniente da aceleração e da disrupção tecnológica. Isso cria desconfiança em relação às instituições, o que é negativo. Quando não há confiança, tudo se torna muito caro e muito instável, e a democracia enfraquece. Vemos isso nos nossos cidadãos, com a depressão crescente e a apatia, se olharmos para a nova geração. Não é resultado da Covid-19. As pessoas estão muito cansadas, e é por isso que muitas votam em partidos que lhes dizem que podem parar o tempo, que podem abrandar, que não precisam de correr depressa, que não há urgência. Se não as compreendermos, se não tivermos compaixão por este tipo de dor, podemos acelerar, mas não haverá ninguém. Portanto, tem de haver equilíbrio, mas não creio que exista um ideal. Há sempre um equilíbrio que é preciso ter em mente na política.
Costuma dizer-se que a história repete-se. Diria que isso já está a acontecer, tendo em conta a ascensão da extrema-direita e desses movimentos que, com ideias simples, transmitem às populações que há uma saída mais fácil, que não é preciso fazer nada, quando, na realidade, não têm soluções concretas?
A história repete-se muitas vezes, porque a natureza humana não muda. A nossa biologia é praticamente a mesma. As minhas mitocôndrias evoluíram há dois mil milhões de anos e ainda estão a funcionar. O meu corpo é bastante constante, assim como o funcionamento do meu cérebro, dos meus movimentos e da regulação. O novo elemento, que nunca vimos antes, é a tecnologia, que é muito transformadora. Não temos tempo suficiente para compreender as consequências, não temos tempo suficiente para regulamentar, e estamos apenas a correr atrás dela. Vemos a rutura que está a provocar na sociedade, vemos as disparidades que está a causar nas regiões, entre quem tem e quem não tem. Aqueles que vão rápido vão à velocidade da luz, e os outros não conseguem acompanhá-los. O futuro tornou-se muito incerto e acho que nunca vimos isto antes, o que faz parte do problema da ansiedade da sociedade. A apatia dos jovens está, de certo modo, relacionada com o facto de não verem um futuro. Não posso dizer aos meus filhos o que estudar, porque não faço ideia que empregos estarão disponíveis. Só posso dizer-lhes que têm de investir energia na cooperação e que têm de se adaptar constantemente às mudanças, mas isso é muito difícil. Numa geração, o futuro tornou-se muito incerto.
O que é o trabalho? O trabalho é energia armazenada. Abdica-se de algo em troca de tempo livre e armazena-se dinheiro para o futuro. Mas, se não veem um futuro, porque é que os jovens fariam isso? Assim, acho que as coisas mudaram por causa da tecnologia atual. Essa ideia fundamental de que temos de tentar ir mais rápido do que a China, os Estados Unidos ou alguém que está a investir muito mais dinheiro do que nós é o modelo oposto à coesão, porque a coesão pressupõe que, mesmo que o alargamento tenha acabado de acontecer, temos a oportunidade de nos empoderarmos. Portanto, existem dois modelos diferentes; não se trata apenas de dinheiro ou de negócios. Não acredito em mecanismos centralizados, porque o futuro é muito incerto, e o que aprendi com a biologia é que quanto mais diversificadas forem as soluções apresentadas, maiores serão as hipóteses de uma delas funcionar. Acredito nos pequenos investimentos, acredito no investimento no comum e em perceber que não se pode perder as pessoas.
A democracia é uma questão de confiança. Quando chegamos aos dias de hoje, em que vemos algo nas notícias e jás não sabemose o que vemos é real ou não, porque não conseguimos distinguir, é extremamente perturbador. No que é que se pode confiar agora? Será necessário ver com os próprios olhos? Se uma guerra se desenrolar algures, não saberemos se é verdade ou não. Nem toda a gente pode viajar até lá e ver com os próprios olhos
É como o desenvolvimento humano. Para uma criança correr, primeiro tem de se sentar, depois tem de gatinhar, depois tem de se levantar, depois tem de andar e só então pode correr. Se quisermos que ela corra assim que se sentar, é impossível. É muito semelhante no que diz respeito ao desenvolvimento das diferentes regiões. Algumas regiões estavam a perder tempo, devido a uma forma centralizada de organizar a economia, que não funcionou muito bem, e estão a tentar alcançar outras que passaram por toda a fase de desenvolvimento. Mas, se não investirmos tempo e energia, se apenas lhes dissermos que têm de correr, não o farão. É preciso investir energia e tempo. Depois, podem crescer, e tudo pode crescer. É preciso investir em estabilidade em tempos de tanta incerteza e instabilidade. E não concordo com essa dicotomia entre supercomputadores e morte. Não concordo.
Não sei como é na Alemanha e em Itália, mas em Portugal as eleições europeias são relegadas a uma espécie de segunda categoria. Creio que isso está relacionado com o facto de as pessoas não terem noção do que acontece na UE. Como é que nós, jornalistas, podemos mostrar que a Europa tem um grande impacto nas políticas regionais e locais?
Todos têm responsabilidade. Na verdade, a responsabilidade é dos líderes, porque são os primeiros-ministros, os presidentes das regiões, os presidentes de Câmara que não podem ter a desculpa de não compreender que é muito melhor fazer as coisas em conjunto do que separadamente. É função do líder compreender a realidade ao pormenor, não de educar as pessoas. Elas têm demasiadas coisas com que se preocupar para estarem constantemente a ser educadas sobre tudo. É responsabilidade do líder compreender que, se quer gerir bem a sua cidade, é muito melhor fazê-lo no âmbito europeu do que sozinho. Todos sabem isso. Até os populistas sabem isso.
Mas, se sabemos isso, temos de fazer algo a esse respeito. Vocês, jornalistas, não podem substituir esse nível. Digo sempre aos nossos líderes europeus, aos nossos líderes locais, que é o seu papel investir na Europa, investir a nível local, traduzir isso. Não acredito no problema da identidade europeia, porque a Europa é composta por todas as diferentes culturas, línguas e realidades. Sempre foi assim, com esta tradução constante entre elas. Sou fã de Umberto Eco, por isso acredito nesta forma de pensar, nesta tradução constante, e em encontrar um caminho juntos. Portanto, não se trata de a Comissão Europeia fazer vídeos no TikTok sobre, sei lá, o que a Europa faz aqui e ali. É necessário ter parceiros, líderes, níveis locais, comunidades que compreendam que temos de investir energia para permanecermos juntos, porque há muitas forças que nos separam. E todos ficarão pior se não preservarmos a UE.
Na sua opinião, qual é a maior ameaça à democracia na Europa neste momento?
Acho que é a IA generativa. Nós, seres humanos, criámos muitas armas desde o início dos tempos, e sempre tivemos de ver a destruição para parar. Tivemos até de passar pela bomba atómica. Estamos a criar uma superinteligência. Todos os que participam na criação de uma superinteligência sabem que não fazemos ideia do que vai acontecer no dia seguinte. Sabemos que não fazemos ideia de como contê-la. Não temos meios para contê-la. E, mesmo assim, continuamos a criá-la a uma velocidade que não conseguimos acompanhar. A democracia é uma questão de confiança. Quando chegamos aos dias de hoje, em que vemos algo nas notícias e já não sabemos se o que vemos é real ou não, porque não conseguimos distinguir, é extremamente perturbador. No que é que se pode confiar agora? Será necessário ver com os próprios olhos? Se uma guerra se desenrolar algures, não saberemos se é verdade ou não. Nem toda a gente pode viajar até lá e ver com os próprios olhos. Como é que é possível gerir o mundo quando já não podemos confiar no que lemos, nem no que vemos? Von der Leyen disse que pretende tornar a UE líder mundial na adoção mais rápida da IA. Será um modelo que privilegia a IA, no qual, se uma empresa utilizar IA, terá bónus ou benefícios, não sei quais.
Criámos a Europa para proteger as pessoas que aqui vivem. Não temos um sistema de guetos como nos Estados Unidos, onde há competição; o primeiro ganha, os outros morrem e ninguém se importa. Aqui, investimos nas pessoas. Estamos a criar um quadro que protege as pessoas. Esta é a origem e protegemos a natureza por causa das pessoas. Investimos na economia por causa das pessoas. Investimos em infraestruturas por causa das pessoas. Criamos empregos por causa das pessoas
Perguntei à Confederação Europeia de Sindicatos (CES) se von der Leyen ouviu os trabalhadores, pelo menos. Porque se diz que as empresas europeias devem usar IA, está a dizer que vão perder os seus empregos. Não houve discussão sobre isso.
Não há discussão sobre esse assunto. Acompanho de perto o que está a acontecer a nível mundial na discussão sobre IA. Mas não só... Ouço os especialistas em tecnologia. É muito importante ouvi-los. Nesta criação, usam apenas a razão. Todas as nossas histórias de criação humana, toda a nossa sabedoria de milhares de anos tem de ser equilibrada. Não pode ser apenas a partir da razão; tem de ser boa, mas não há moral. Esse é o grande problema. Estamos a criar uma tecnologia, uma nova inteligência não orgânica, sem estrutural moral. Quão perigoso é isso?
Além dos empregos, a IA também levanta questões no que diz respeito ao ambiente e aos recursos gastos. Como é que as instituições europeias planeiam defender isso?
Isso é muito difícil e não há uma resposta fácil. Como precisamos de segurança energética, investimos muito na produção local de energia, de energia verde. Temos as metas energéticas, para reduzir o consumo de energia, mas, ao mesmo tempo, as centrais de dessalinização em Barcelona estão a competir com os centros de dados. Ambos precisam de muita água e de muita eletricidade. Vamos internalizar, por motivos de segurança, a extração de matéria-prima que foi externalizada para a China, o que significa externalizar toda a poluição que isso acarreta. É preciso muita água, muita eletricidade, há muita poluição envolvida, e estamos a trazer de volta parte da poluição. Segurança e competitividade devem andar de mãos dadas, mas uma prende-se com redundância, reservas, investimentos a longo prazo, enquanto a outra foca-se na eficiência, competitividade, rapidez, simplicidade, sem redundância, sem reservas, curto prazo. É preciso equilibrar estas duas partes. Não é que uma tenha toda a verdade e a outra não; essa é a beleza da liderança. Mas, a longo prazo, é sempre melhor discutir os diferentes aspetos da realidade e tomar uma decisão mais lentamente, porque há mais hipóteses de durar e de ser uma verdade daqui a cinco anos.
Mas é uma grande responsabilidade, porque os 'tech bros' só temem realmente a UE.
Porque é a única instituição que poderia regulá-los, e isso é bom. Precisamos de ganhar tempo e isso é muito útil. Precisamos de tempo para compreender o que estamos a criar e como isso afeta a nossa população. Porque, no fim de contas, a Europa não é um projeto económico, é um projeto humano. Criámos a Europa para proteger as pessoas que aqui vivem. Não temos um sistema de guetos como nos Estados Unidos, onde há competição; o primeiro ganha, os outros morrem e ninguém se importa. Aqui, investimos nas pessoas. Estamos a criar um quadro que protege as pessoas. Esta é a origem e protegemos a natureza por causa das pessoas. Investimos na economia por causa das pessoas. Investimos em infraestruturas por causa das pessoas. Criamos empregos por causa das pessoas. Não criamos empregos para criar empregos. Portanto, é uma forma de pensar muito diferente e, na realidade, somos os únicos a fazê-lo, e não é possível fazê-lo ao nível dos Estados-membros. A nível europeu, é um grande mercado, uma grande economia. Podemos tentar ganhar algum tempo e regulamentar e proteger as pessoas de algo que nem nós compreendemos.
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