Mulheres chilenas preparam-se para resistência ao governo de Kast
- 30/12/2025
"Kast representa um retrocesso para a mulher chilena que remonta à época da ditadura, quando as mulheres eram torturadas, ultrajadas e desaparecidas. Não valiam nada. Esse homem, que defende um ditador, quer eliminar o Ministério da Mulher e a lei do aborto. É por isso que tenho medo", disse à Lusa a universitária Isidora Rocha, de 26 anos.
"Eu sei o risco de retrocesso que corremos com Kast em matéria de direitos reprodutivos. Ele quer proibir as pílulas anticoncepcionais e quer revogar a lei do aborto. Essas iniciativas prejudicam muitos dos direitos adquiridos por nós, mulheres. Vejo uma sociedade crispada e tensa no próximo governo", acrescentou a também universitária Antonia Orellana, de 24 anos.
José Antonio Kast foi eleito Presidente a 14 de dezembro com 58,2% dos votos válidos, a melhor votação da direita na história do Chile. A partir de 11 de março, os chilenos terão o primeiro Presidente a defender abertamente a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), da qual diz ser herdeiro. Kast já classificou a "ideologia de género pior do que o marxismo" que Pinochet combateu com mão de ferro.
Kast é assíduo das missas de domingo, membro do movimento católico conservador Schönstatt e pai de nove filhos com a mesma mulher, a quem proibiu de tomar pílulas anticoncecionais.
A mulher, Pía Adriazola, disse à imprensa em 2017 que um médico lhe receitou as pílulas, mas que, ao contar ao marido, a reação foi veemente.
"Estás louca? Isso não pode!", declarou Kast. "Como que não pode? Todas as minhas amigas tomam", alegou Pía.
Em vez da Ciência, Kast enviou a mulher a um sacerdote, que recomendou um "método natural" a prática de abstinência. Formada em advocacia, Pía dedicou-se a criar os nove filhos, enquanto o marido seguiu a carreira política.
"Kast é uma ameaça latente para os direitos das mulheres e para as conquistas feministas. É uma figura ultraconservadora, contrária à agenda de igualdade. Durante toda a sua história opôs-se sempre às propostas de direitos sexuais e reprodutivos. No seu programa de governo, os direitos das mulheres estão ausentes e evidencia um retrocesso até mesmo em matéria de igualdade salarial. Acreditamos mesmo que os direitos das mulheres serão afetados e que estarão em questão os avanços que conquistamos até agora", indicou Jennifer Alfaro, coordenadora de estudos em Direitos Humanos e Justiça de Género da organização não-governamental (ONG) Corporación Humanas.
Nos 16 anos em foi deputado (2002-2018), Kast dedicou-se a travar qualquer avanço em matéria de direitos sexuais e reprodutivos. Votou contra a lei do divórcio, aprovada no Chile somente em 2004. Em 2008, liderou uma ação no Tribunal Constitucional que proibiu por dois anos anticoncetivos de emergência como a pílula do dia seguinte e o uso de dispositivos intrauterinos. Em 2021, o Chile aprovou a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Kast foi contra.
Enquanto vários países da região possuem leis que permitem o aborto em qualquer situação, no Chile, a interrupção da gravidez só foi permitida a partir de 2017, mas apenas nos três casos clássicos: risco de vida da mãe, inviabilidade do feto e violação. Mesmo assim, Kast votou contra o aborto mesmo em casos de violação.
Na segunda tentativa de chegar à Presidência em 2021, Kast colocou todos esses pontos no programa de governo, prometendo revogar as leis. Naquela campanha, prometeu eliminar o Ministério da Mulher e da Igualdade de Género, mas percebeu que teria menos resistência se o transformasse em Ministério da Família, defendendo o modelo tradicional e relegando à mulher um papel de procriação.
Contra a queda da natalidade, prometeu incentivos financeiros para as mulheres casadas com filhos. As solteiras ou divorciadas com filhos ficam de fora.
"Kast quer levar à esfera pública a sua visão de família tradicional na qual a mulher deve ficar em casa e dedicar-se à maternidade. Não há uma visão da mulher no espaço público, com participação política nem em postos de decisão", denunciou Alfaro.
O próximo Presidente do Chile nem vai precisar revogar leis para afetar os direitos das mulheres. O regime presidencialista dá-lhe amplas atribuições administrativas como diminuir a distribuição de anticoncecionais, cortar financiamento a iniciativas feministas e a políticas públicas em matéria reprodutiva, indicar diretores de hospitais contrários ao aborto e diretores de escola com uma determinada visão sobre educação sexual, podendo modificar o currículo escolar, ou mesmo desproteger as vítimas da violência machista ao designar chefes permissivos na polícia.
"Temos problemas severos com Kast no tocante aos direitos sexuais e reprodutivos e, claro, na sua visão sobre a família na qual a mulher é apenas a dona de casa. Ora ele diz que vai rever as leis, ora que não vai mudar nenhuma, ora que vai melhorar a legislação. Porém, o principal problema é que Kast representa o autoritarismo. E quando não há democracia, as mulheres perdem. Sem democracia, nós retrocedemos", advertiu Teresa Valdés, socióloga e coordenadora do Observatório de Género e Equidade.
Aos 74 anos, Teresa Valdés tem mais de 50 anos de reconhecida luta feminista, atravessando toda a ditadura de Augusto Pinochet. Foi integrante desde a primeira hora da Mulheres pela Vida, a organização que liderou as grandes manifestações contra o regime militar que levaram Teresa várias vezes à prisão.
Agora, 35 anos depois, o movimento feminista depara-se com um Presidente defensor daquele regime e vê-se na missão de defender os direitos adquiridos.
"O nosso capital é a nossa história de luta e as nossas conquistas. O meu sentimento é o de não termos sido capazes de transmitir essa luta às novas gerações. Agora, vamos continuar nesse caminho", prometeu Teresa Valdés.
"O facto de termos um Presidente que defende Pinochet e que signifique retrocesso na agenda feminista é realmente desolador, mas mantenho a esperança de que a engrenagem social nos una e que revitalizemos a luta para mantermos o que conquistamos. O mais me preocupa é a cultura de violência social que pode surgir. Isso dá-me medo", desabafou Jennifer Alfaro, prevendo um horizonte de tensão nas ruas.
Ao mesmo tempo, apostou ter a certeza de que "haverá uma reação social perante qualquer retrocesso em direitos sociais".
"Vejo um cenário de protesto social se Kast avançar contra benefícios sociais. Agora com autoridade poderá mandar a polícia reprimir os protestos como sempre quis. Vejo um panorama difícil", apontou Teresa Valdés.
O braço-de-ferro vai começar antes mesmo de Kast assumir a Presidência. Três dias antes da posse, em 08 de março, Dia Internacional da Mulher, já está prevista a primeira manifestação contra o novo Governo para marcar o terreno antes mesmo de o jogo começar.
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