"Fiz retrato da realidade". "Porta Premium" da RTP é "convite à reflexão"
- 23/12/2025
A RTP Play já se tornou célebre por apostar em projetos fora da caixa e, entre as propostas mais recentes, temos "Porta Premium", uma série de comédia que serve como "um convite à reflexão" sobre a crise da habitação.
Foi para sabermos mais sobre "Porta Premium" que entrevistámos Tota Alves - a criadora, argumentista e realizadora do projeto que, durante a conversa com o Notícias ao Minuto, deixou a vontade de continuar para lá desta primeira temporada.
“Porta Premium” tem no elenco nomes como Gonçalo Waddington, Sónia Balacó, Tânia Alves, Mauro Hermínio, Janico Durão e participações especiais de outras caras conhecidas como Miguel Guilherme ou Rita Pereira - e pode ser vista na íntegra (e de forma completamente gratuita) através da RTP Play.
Pode ler abaixo a entrevista do Notícias ao Minuto com Tota Alves.
© RTP
“Porta Premium” fala sobre a atualidade que se vive em Portugal - sobretudo sobre a crise da habitação - e tem um estilo semelhante a séries de comédia como “The Office” ou “Parks and Recreation”. Como surgiu o conceito de seguir uma agência imobiliária e de o misturar com este formato?
A ideia da série surgiu porque comecei a receber em minha casa muitos folhetos de agentes imobiliários e comecei a colecioná-los. Quando os via em conjunto achava tudo aquilo muito bizarro, porque as fotografias faziam com que me questionasse quem eram aquelas pessoas. Se achavam que por receber em minha casa uma fotografia delas - com os braços cruzados ou numa poltrona - que lhes vou ligar para comprar ou vender uma casa. Foi esse o ponto de partida que me fez pensar nesta ideia, associada a um formato de que gosto muito que é o do falso documentário.
Gosto deste género porque me parece uma forma muito eficaz de fazer um retrato da sociedade neste momento. Obviamente sou uma grande fã de “The Office” e de “Parks and Recreation”, mas também de outras séries dentro deste género. Sou grande, grande fã de “How To With John Wilson”. Há várias séries dentro deste formato - que acho que é muito pouco explorado em Portugal. Também foi isso que me levou a fazer esta série.
Qualquer pessoa que vê a série consegue reparar que há uma grande contradição nas personagens de “Porta Premium”. Enquanto agentes imobiliários, estão sempre a dizer que o que lhes importa são as pessoas e a sua felicidade, que é por isso que trabalham neste ramo. Apesar disso, ignoram as condições de vida de colegas com quem estão todos os dias. É o caso da secretária Marta, que não tem onde viver e por isso dorme na agência - sendo que tem uma mala de roupa bem à vista de todos. A série explora esta contradição de uma forma subtil e gostava de saber: esta decisão foi informada por experiências pessoais enquanto esteve à procura de casa ou por receber agentes imobiliários em sua casa?
Achei que a personagem da Marta era muito interessante para que nós - espectadores que não são agentes imobiliários - estivesse dentro da agência e que, apesar de achar bizarro o que está a acontecer, está lá porque tem de estar lá. Porque precisa de ganhar dinheiro. Ela até tem um passado privilegiado mas, naquele momento, não tem dinheiro e por isso trabalha naquela agência.
Quanto à minha experiência pessoal, eu tenho o privilégio de ter tido há uns anos um contrato de trabalho sem termo. Eu trabalho desde os 22 anos e foi o único contrato sem termo que tive na minha vida. Tive este contrato num período em que as casas ainda estavam a um preço aceitável, em que ainda era possível pagar uma renda e juntar um pouco de dinheiro.
Ao mesmo tempo que tive esse privilégio de comprar uma casa, fui depois atropelada por uma taxa de euribor que fez com que eu e a minha família ficássemos a pagar 1.200€ por mês, o que foi muito complicado. Porque - como a maioria das pessoas - eu e a minha família somos pessoas normais, somos precários. Esticamos o dinheiro até ao fim do mês, tenho um filho.
Mas logo a seguir a esse período em que consegui comprar casa e ter um filho fui despedida e estou desde então a recibos verdes, num meio em que os financiamentos não chegam para que uma pessoa consiga ter uma vida confortável.
Portanto, também sofro com a crise da habitação por via da prestação que pago ao banco - que é cada vez mais alta enquanto os bancos têm cada vez mais lucros. Nos últimos dois anos, as casas do meu prédio têm ficado vazias e as únicas pessoas que vieram viver são franceses e alemães. Porque os preços das casas não estão acessíveis aos portugueses (que ganham salários médios) e o mercado de compra e venda de casas não é um mercado nacional nem regional - é um mercado internacional de investimento, que inflaciona imenso o preço das casas e impede que as pessoas possam ter acesso a um direito básico que é terem uma casa para viver.
Ramiro Pais (Gonçalo Waddinton) © RTP
A série tem outro elemento interessante em comparação com outras séries deste formato que já referi. Mesmo que as personagens não comecem a ser especialmente agradáveis, vão crescendo e conquistando um espaço no “coração” dos espectadores - que é algo que não acontece na “Porta Premium”. Acho que a maioria dos portugueses tem uma má experiência com o processo de comprar casa e muitos vão certamente encontrar na série situações que possam ter vivido - o que pode ser tão engraçado quanto frustrante para o espectador.
O objetivo era mesmo fazer uma comédia com a tragédia da habitação. Era dar-nos a oportunidade de rirmos de um problema que todos vivemos, direta ou indiretamente.
No outro dia, fiz uma lista de todas as casas em que já vivi e cheguei à conclusão que, ao longo da minha vida, vivi num total de 24 casas. Tenho 35 anos e, desde que nasci, vivi em 24 casas. Saí da casa dos meus pais aos 18 anos - algo que hoje em dia é raro porque 70% da população com menos de 30 anos vive com os pais - e desde então que vivi em quartos. Só arrendei casa quando eu e o meu companheiro decidimos ter um filho. Foi aí que fomos para uma casa só os dois, porque também chegámos a partilhar quarto.
Acho que a nossa vida é o retrato de uma geração que nasceu com a esperança de - após estudar e tirar um curso - ter uma vida adulta estável e confortável, mas na área da cultura e em outras só temos uma extrema precariedade.
É interessante porque a série, no final, espelha quase que uma intervenção da pessoa que está a fazer aquele documentário sobre a realidade das agências imobiliárias - um pouco por todo o país, mas sobretudo na área metropolitana de Lisboa. O objetivo é mesmo esse? A série quer ser uma denúncia em relação a esta situação?
Acho que é um convite à reflexão, sobre como o negócio da habitação está a ser gerido. Ter um sítio para morar é um direito, mas, ao mesmo tempo, é um negócio e, no caso de Portugal, é um negócio cada vez mais lucrativo, especulativo e está cada vez mais na mão de investimento estrangeiro.
A série é sem dúvida alguma, e de uma forma muito assumida, um convite à reflexão sobre isso. Ao mesmo tempo, é uma oportunidade para todos nos rirmos sobre o que está a acontecer, para falarmos sobre o tema sem esmiuçar as tragédia das pessoas. A mim não me interessava fazer uma série sobre a crise da habitação e filmar as pessoas a serem expulsas de uma barraca e a barraca a ser destruída.
Fiz um retrato da realidade, tentando não explorar a miséria - mas a miséria, infelizmente, existe. Há pessoas que trabalham e vivem em situação de sem abrigo. Há pessoas que trabalham e que a única casa que conseguem sustentar é uma barraca. É por isso que os bairros com barracas estão a crescer ao redor de Lisboa… Em Loures, por exemplo, onde a série se passa e foi filmada.
Eu acredito que tudo é política, portanto a nossa série tem certamente um tema muito claro e que critica.
Mencionou Loures e a verdade é que a série contou com o apoio da Câmara Municipal de Loures. Como foi conseguir esse apoio?
O apoio não foi monetário. O que a Câmara Municipal de Loures nos deu foi um espaço. As pessoas da Câmara de Loures da área da cultura foram parceiros simpáticos e deixaram-nos gravar, por exemplo, no espaço do edifício daquele senhor que, na série, está a ser expulso por uma das agentes imobiliárias. Aquele edifício é da Câmara, onde a divisão da cultura e do desporto exercem o seu trabalho. Foi sobretudo um parceiro cultural, não tivemos qualquer reunião com o departamento da habitação.
Falando sobre parceiros, gostaria também de saber como é ter a RTP Play como plataforma de distribuição e divulgação de séries nacionais como a “Porta Premium”.
Sou muito grata à RTP Play. É à RTP Play que devo a minha carreira e é para onde tenho trabalhado. É um prazer para mim trabalhar e ter os meus trabalhos numa plataforma de streaming pública e gratuita, que permite o acesso a todas as pessoas. Acredito que a RTP Play será ainda maior, sobretudo porque ter uma proposta pública a concorrer no mercado é muito interessante. Gosto da irreverência da RTP Play, só posso agradecer.
Quanto ao futuro e a outras plataformas ou canais, tendo a acreditar que o objetivo principal de todas as plataformas é ter lucro independentemente do cariz político dos projetos. Já vi projetos super irreverentes e politizados como “How To With John Wilson” em plataformas como a HBO Max. Até mesmo outras plataformas mais contidas politicamente como a Paramount acolheram projetos do realizador de “The Rehearsal”, o Nathan Fielder.
Por isso, acredito que há espaço e estou bastante disponível para aceitar esses convites [risos]. É um prazer trabalhar com a RTP e a RTP Play, mas gostaria muito de trabalhar com orçamentos mais confortáveis. A produção da “Porta Premium” foi bem punk. Filmámos os cerca de 125 minutos da série em três semanas, cinco dias por semana.
Precisamos que as plataformas arrisquem mais nos seus conteúdos.
Os agentes imobiliários da Porta Premium: Marta Mineiro (Janico Durão), Maria Natário (Sónia Balacó), Graça Cunha (Tânia Alves), André Moreira (Mauro Hermínio) e Ramiro Pais (Gonçalo Waddington) © RTP
Em relação ao futuro: há novos projetos no horizonte? Alguma coisa que a Tota Alves gostasse de fazer?
Tenho muita vontade de fazer mais uma curta-metragem. Estamos a tentar fechar a montagem financeira para sabermos se é possível avançar. Tenho muita vontade de dar continuidade à “Porta Premium”. Até porque penso que cinco episódios para este formato é muito pouco e acho que, apesar de termos tentado fazer o melhor possível tendo em conta todas as condicionantes, esta série teria muito a ganhar se fossem dez ou treze episódios.
Por isso, tenho muita vontade de fazer mais temporadas com este registo de pelo menos dez episódios. Porque uma série neste tipo de formato precisa disso. O que seria de uma série como “The Office” ou outro falso documentário com apenas cinco episódios? Não dá, precisamos de tempo para nos envolvermos com as personagens. Acho que conseguimos, mas nota-se que o final foi metido a ferros - que tinha de haver um final.
De facto há ali uma cena no final na interação das personagens do Gonçalo Waddington e do Miguel Guilherme, que mete ali uns dinheiros, que poderia ser mais explorada…
Há temas dentro do imobiliário que não deu para aprofundar e que tinha muita vontade de fazer. Como o investimento estrangeiro, os alojamentos locais, as simbioses com a política… A quantidade de políticos que são proprietários, que compra e vende terrenos… Há um mundo muito grande para explorar na série e gostaria muito de ter oportunidade de o fazer.
Qual tem sido a reação do público à série?
O nosso Instagram tem vários clipes virais e a receção está a ser muito boa. Para mim é uma enorme surpresa haver uma boa receção do próprio meio dos agentes imobiliários. Estava com algum receio de haver uma reação do meio das agências imobiliárias e, surpreendentemente, tenho chegado à conclusão de que tem havido um grande acolhimento.
Porque os que fazem falcatruas, que se lançam em ‘egotrips’, os que têm formas de trabalhar que se endeusam a eles próprios, felizmente, são uma minoria. É um meio onde há muita rotatividade, onde há muitas pessoas que já foram agentes imobiliárias e há muita comunicação entre eles - que também estão a ser os principais promotores de comunicação da série. Por isso estou-lhes agradecida e fico muito feliz por isso.
Estamos há semanas como a série mais vista da RTP Play. Acho que a RTP está contente e nós também estamos contentes. Já vi a série muitas vezes… Tive a ideia, escrevi com outras pessoas, depois a realização, a montagem, toda a pós-produção… Então estava muito descrente da série, porque já só vejo os defeitos, e a forma como a série está ser recebida está a ser uma surpresa muito boa.
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