"Curar um 'coração partido' exige o processo de luto do presente"
- 14/09/2025
Terminar uma relação amorosa nunca é fácil. Contudo, é um processo que para uns acaba por ser menos doloroso do que para outras pessoas. O fim de namoro ou casamento, por exemplo, pode levar muitas vezes um processo de luto e até acompanhamento.
"O processo de curar um ‘coração partido” exige o processo de luto do presente, pela perda das dinâmicas e rotinas a dois”, revela ao Lifestyle ao Minuto o psicólogo clínico Mauro Paulino. Em conjunto com Sofia Gabriel lançaram este ano o livro ‘Virar a Página - Como Lidar com o Fim de uma Relação’, da editora Pactor.
Na entrevista, revelaram a importância da obra, alguns mitos relacionados com o fim de uma relação e alguns dos passos que devem ser adotados e que ajudam no processo de superação.
"Um dos maiores mitos é que o tempo cura tudo, quando, na verdade, o que cura é o que fazemos com ele, sendo importante adotarmos um papel ativo para recuperar o nosso bem-estar", revelou Sofia Gabriel.
Sofia Gabriel e Mauro Paulino são os autores do livro© Pactor
Como surgiu a ideia de se unirem para escrever um livro sobre como lidar com o fim de uma relação?
MP (Mauro Paulino): No âmbito dos pedidos de ajuda e consequente acompanhamento psicológico de pessoas em luto pelo término de um relacionamento na nossa prática clínica, tornou-se explícita a lacuna de livros sobre esta problemática na população portuguesa. Por acréscimo, o sucesso da versão portuguesa do bestseller espanhol ’A Mensagem das Lágrimas: Guia para Lidar com o Luto’, da qual fomos ambos responsáveis, motivou-nos também para a escrita desta mais recente obra.
O livro da ediora Pactor está à venda por 13,95 euros© Pactor
Qual a importância de existir este género de livros de autoajuda?
SG (Sofia Gabriel): Para que a população portuguesa disponha de linhas orientadoras, baseadas em evidência científica, escritas por psicólogos com trabalho efetivo na área, que lhes permitam um processo de luto mais saudável. Já ouvimos leitores partilharem que “este livro é um abraço” e um dos objetivos é, exatamente, dar um sentido de controlo, segurança e previsibilidade num momento em que a pessoa se sente perdida. Uma das outras finalidades é contribuir para a prevenção de doença mental, como sintomas de depressão, ansiedade e stress pós-traumático, através das ferramentas partilhadas e também do reconhecimento, através do livro, da necessidade de pedir ajuda especializada.
O que é que o leitor pode encontrar no livro?
MP: Uma verdadeira jornada de autoconhecimento, através de explicações claras sobre as emoções, pensamentos e principais medos que surgem nesse processo de luto; testemunhos e histórias reais de superação, ferramentas eficazes para recuperar o equilíbrio emocional, bem como para aceitar e integrar a perda na nossa biografia. A leitura de cada uma das páginas permite compreender a origem de determinadas escolhas nas relações e dos nossos padrões amorosos, assim como da necessidade de quebrar ciclos disfuncionais e da consequente reconstrução da nossa identidade.
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De que forma o vosso conhecimento científico ajudou a criar as estratégias que apresentam na obra?
SG: O nosso conhecimento científico permitiu transformar a teoria em prática, isto é, a transformação das evidências teóricas em exercícios práticos de reflexão, potenciadores não somente do bem-estar emocional, mas também da aceitação e integração da perda. A título de exemplo, destaca-se a escrita terapêutica. Existem inúmeras evidências científicas dos benefícios da escrita e, por isso, no livro, são apresentadas sugestões práticas de como recorrer à escrita, como escrever uma carta de despedida; a escrita de um diário em que a pessoa regista emoções, pensamentos, dúvidas; a construção de uma lista com todos os benefícios do término; e o desenho da linha do tempo da relação, em que são registados todos os momentos, inclusive os negativos, entre outros.
Por que pode ser tão difícil curar um 'coração partido'?
MP: O processo de "curar um coração partido" exige o processo de luto do presente, pela perda das dinâmicas e rotinas a dois; do futuro, que a psicologia designa como “luto pelo futuro não vivido”, que envolve a aceitação da perda de tudo o que foi projetado e idealizado para o futuro; e também do passado, no caso de traições, em que a pessoa em luto questiona a veracidade das memórias passadas, a identidade do casal, o timing em que uma terceira pessoa entrou nas suas vidas. É o luto de uma pessoa que ainda se encontra viva e que, por isso, tem todo o potencial de nos magoar, por exemplo, quando descobrimos que a pessoa iniciou uma nova relação, que vai casar ou até mesmo que recebeu uma promoção laboral.
Afirmam que o "amor é como uma droga". Porquê?
SG: Quando estamos apaixonados, os efeitos do amor no cérebro são semelhantes aos do consumo de cocaína, pois as hormonas libertadas são, tendencialmente, as mesmas como é exemplo a oxitocina (hormona associada ao bem-estar) e a serotonina (hormona associada à felicidade e à excitação). E, portanto, ao longo dos anos, tem existido um conjunto de investigações a comparar a experiência de perda de uma relação a uma de abstinência de drogas. Quando estamos de coração partido o nosso cérebro responde da mesma forma que o de uma pessoa viciada em cocaína numa fase de abstinência de consumo. Por exemplo, um foco excessivo e obsessivo na pessoa que nos partiu o coração (a “droga”), acompanhado por um enorme desejo (difícil de ignorar ou relativizar) de estar com ela (no caso da droga, o desejo de consumir).
Os principais erros tendem a ser a tentativa de continuar a dialogar com a pessoa perdidaExiste realmente a pessoa certa e a pessoa errada para nós?
MP: O que realmente existe são relações saudáveis, as quais não podem, ou pelo menos não devem ser construídas com pessoas que apresentam o que a Psicologia designa por “bandeiras vermelhas”. A título de exemplo, o lovebombing, traduzido para português como “bombardeamento de amor”, em que existem expressões de afeto de forma avassaladora, tipicamente confundidas com a fase de lua de mel, comum no início de uma relação, mas que, na verdade, tende a ser o início de um ciclo de manipulação e violência psicológica, em que o agressor conquista a vítima para mais tarde a manipular e controlar. Alguém com este tipo de comportamento dificilmente será a pessoa certa. E no que a Psicologia aponta, se tivermos de definir uma “pessoa certa”, seria sempre aquela que apresenta estabilidade emocional, lealdade, bondade, empatia, competências de diálogo e capacidade para tomar decisões difíceis em casal.
Quais os principais erros cometidos por quem tenta seguir em frente após o término de um relacionamento?
SG: Os principais erros tendem a ser a tentativa de continuar a dialogar com a pessoa perdida, com argumentos como “mas deveríamos, pelo menos, ser amigos”, sobretudo numa primeira fase; o ter acesso à vida do outro através das redes sociais, numa tentativa de obter informação e sentir algum controlo, alimentando, não raras vezes, fantasias de reconciliação baseadas em sinais ambíguos; a idealização da pessoa perdida, focando e valorizando as características positivas em detrimento das negativas, ignorando incompatibilidades e momentos negativos da relação; o isolamento da rede social e familiar quando o colo emocional é imperativo para um maior bem-estar em momentos de vulnerabilidade; e o não preencher o vazio da perda com novas rotinas e dinâmicas, desde novos momentos de autocuidado a novos projetos que facilitam a reconstrução da identidade da pessoa em luto.
Quando se termina um vínculo amoroso, existe um processo de luto pelo qual temos de atravessar. Consideram que esta ideia ainda é um mito na sociedade?
MP: Sim, continua a ser um mito, precisamente pelo estigma social que ainda predomina na sociedade e que é percetível em frases como “era só uma relação”, “ainda vais conhecer muitas pessoas”, “agora é bola para a frente” ou “é porque não era para ti”. Por vezes, coexiste uma pressão social para a pessoa iniciar um novo relacionamento romântico, sem respeitar o tempo e espaço para estar sozinha.
Além disto, o que sentem ser necessário desmistificar sobre o fim das relações? Existe algum aspeto em particular que continua a ser desvalorizado?
SG: Diria que um dos exemplos é, como mencionado, o não respeitar o tempo e o espaço para estar sozinho, o qual é imperativo para a pessoa em luto aprender a amar-se a si própria e, por conseguinte, a amar outro ser humano. Esse tempo e espaço permitem refletir sobre os relacionamentos, escolhas amorosas do passado e descobrir padrões que a pessoa não pretende continuar a perpetuar na sua vida. O autoconhecimento potenciado por respeitar este espaço reduz o risco de decisões impulsivas, como iniciar uma nova relação de forma pouco criteriosa; retoma uma relação do passado onde a pessoa não foi feliz; ignorar bandeira vermelhas, pelo medo de ficar sozinho, construindo uma relação com um enorme risco de ser tóxica.
De que forma 'o trauma' vivido numa antiga relação pode impactar a próxima?
MP: Existe, por exemplo, o risco do fantasma da traição, vivenciado na última relação, e que pode potenciar uma postura de hipervigilância na relação seguinte, ou seja, quando a pessoa se encontra excessivamente alerta e à procura de pistas e sinais de uma potencial traição ou abandono. Naturalmente que esta postura desencadeia um sofrimento e cansaço enormes no dia-a-dia da pessoa, assim como um desgaste na relação que é, por si só, um fator de risco para o que a pessoa mais receia e tenta prevenir: o término dessa nova relação. Para evitar este ciclo de autossabotagem, destaca-se a importância da intervenção psicológica, onde se explora, trabalha e se liberta esse fantasma. E, mais uma vez, o respeito pelo tempo e espaço sozinho também é um fator protetor deste ciclo disfuncional explanado anteriormente.
O primeiro passo para a pessoa se libertar do “medo de ficar sozinha” é experienciar bem-estar consigo própria Para a elaboração deste livro, incluíram testemunhos reais. Como chegaram até essas pessoas? Houve alguma história que vos tenha impactado em específico?
SG: Todas as histórias, pela sua riqueza emocional, nos impactaram e inspiraram de forma distinta. Os testemunhos são de pessoas que iniciaram acompanhamento psicológico após o término de uma relação e às quais pedimos autorização para incluir a sua história. O feedback dessas mesmas pessoas é positivo, pelo sentido de identificação com aquelas que estão a sofrer e nas quais reconhecem a necessidade de potenciar esperança e motivação nos seus processos de luto, tal como pela sensação de superação, empoderamento e bem-estar experienciada ao ler a sua própria história.
Consideram que existe uma necessidade constante das pessoas terem uma relação, não conseguindo 'ser felizes' sozinhas? Se sim, porquê e o que podemos fazer para contrariar essa ideia?
MP: O primeiro passo para a pessoa se libertar do “medo de ficar sozinha” é experienciar bem-estar consigo própria e entender que consegue sentir-se feliz sem um parceiro, que é capaz de ser feliz sozinha e que, por isso, um relacionamento não vem, de todo, preencher um vazio, mas sim acrescentar e complementar o bem-estar que já predomina. E quando dizemos “sozinho” é na ausência de uma relação amorosa e não na ausência total de relações. Nós, seres humanos, somos seres relacionais e precisamos dos outros para sermos felizes, dada a necessidade de sermos amados por terceiros e a pertença a uma comunidade ou a um grupo para nos sentirmos valorizados e integrados. Mas somos capazes de estar sozinhos, na nossa própria companhia, e sentirmo-nos conectados com o mundo e connosco próprios.
Apesar de todas as dificuldades que um término possa apresentar, deixam claro que é possível conquistar o bem-estar e até mesmo voltar a encontrar o amor. Por que é tão importante transmitir essa esperança aos leitores e às pessoas em geral?
SG: Para que o futuro não seja percecionado com desesperança e, principalmente, para que a pessoa não desista de si própria, da sua vida e do seu bem-estar psicológico. Um dos maiores mitos é que o tempo cura tudo, quando, na verdade, o que cura é o que fazemos com ele, sendo importante adotarmos um papel ativo para recuperar o nosso bem-estar. Ao longo das páginas desta obra, é possível a construção de um plano para seguir em frente, para virar a página, de forma saudável; identificar e quebrar ciclos disfuncionais; reconstruir a identidade e potenciar a autoestima; e voltar a sentir-se no controlo do próprio bem-estar.
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